História de biopirataria

A linha entre biopirataria e desenvolvimento de tecnologia é tênue. Mas o que caracteriza a biopirataria é a apropiação indébita. A legislação que existe hoje é muito burocrática, o que prejudica as atividades de pesquisa e acaba deixando-as sem a devida regulamentação. Mas o fato é que muitos historiadores datam a biopirataria no Brasil logo após a "descoberta" do país pelos portugueses, em 1500.

Os colonizadores tiraram vantagem da ingenuidade dos índios e descobriram como extrair o pigmento vermelho do Pau-Brasil (Caesalpinia echinata). A árvore quase sumiu das matas brasileiras. Chegou perto da extinção para ir tingir tecidos que embarcavam para a Europa e faziam fortunas de portugueses, que trocaram o conhecimento dos nativos por pequenos espelhos, facas e armas de fogo, em um tipo de relação comercial muito desigual chamada de escambo.

Outro caso de biopirataria que abalou fortemente o Brasil foi o contrabando de sementes da árvore de seringueira em 1876, pelo inglês Henry Wickham. Essas sementes foram levadas para a Malásia. Após algumas décadas, aquele país passou a ser o principal exportador de látex mundial.
O norte do Brasil tinha sua riqueza inteiramente produzida pela borracha extraída do látex. Com a ascensão da Malásia e outros países asiáticos, esta afluência acabou no País. Atualmente os países asiáticos Camboja, Indonésia, Malásia, Myanmar, Filipinas, Tailândia e Vietnã são os maiores produtores do mundo. A produção total de borracha natural no mundo em 2000 foi de 6,7 milhões de toneladas, das quais 4,8 milhões produzidas por aqueles países. Apenas 149 mil toneladas foram extraídas pela América Latina no mesmo ano.

Mas, a biopirataria é global. Commodities que têm a cara do Brasil e das quais o país é um dos maiores produtores mundiais, como o café e a soja, não são nativas. No século 17, os colonizadores portugueses trouxeram o café da Etiópia. Da China, em meados do século 20, foi trazida a soja. Itens importantíssimos para as exportações brasileiras hoje.

De qualquer modo, com a tentativa de mudar essa conduta e regularizar a situação, é importante perceber que o Brasil tem as quatro importantes biomas na rota da biopirataria, atualmente: Amazônia, Mata Atlântica, Pantanal e Caatinga.

Patentes e o desenvolvimento da biotecnologia

O Brasil é o quarto mercado do mundo em vendas unitárias de medicamentos, de acordo com Lauro Moretto, diretor executivo em técnicas regulatórias da Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica (Febrafarma). No mercado mundial de medicamentos 30% dos remédios são de origem vegetal e 10% de origem animal. “A biodiversidade do Brasil certamente é fonte de farta riqueza para o país se houver bastante pesquisa”, analisa Moretto e diz que o Brasil desenvolveu produtos biotecnológicos de ponta, como as vacinas e soros do Instituto Butantã, em que, segundo ele, o país é precursor.

Moretto tem uma visão diferente sobre a biopirataria. Ele afirma que, nem sempre, a prática é nociva ao conhecimento humano e à sociedade, que acaba se beneficiando como um todo. “O Brasil se beneficiou de descobertas e conhecimentos produzidos por laboratórios estrangeiros para combater o câncer e a Aids. Doença na qual somos referência no combate, por causa da quebra de patentes autorizada pelo governo”.

Para Moretto, o mundo é um só. “Economicamente é importante ter descobertas, mas ainda somos um país em desenvolvimento por isso é muito difícil fazer pesquisa no Brasil. Para a ciência e o conhecimento, não há fronteiras”. Ele acredita que em um período de duas décadas, o Brasil será uma potência em termos de conhecimentos de biotecnologia aplicada. “Teremos grandes e gratas surpresas”.

Nos casos de conhecimento de ponta em biotecnologia, Moretto cita o exemplo da descoberta do médico pesquisador Sergio Ferreira, do Departamento de Farmacologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, ligada à Universidade de São Paulo (USP). Nos anos 1960, este pesquisador conseguiu isolar agentes no veneno da jararaca que estimulavam a vasodilatação. Publicou os resultados de sua pesquisa, que eram de domínio público. O laboratório norte-americano usou a pesquisa como base para desenvolver um medicamento chamado Captopril, para tratar derrames e problemas cardíacos. Patenteou a droga e ganha cerca de U$ 5 bilhões por ano com a venda desse medicamento. Sergio Ferreira nunca recebeu um centavo pela sua pesquisa, mas Moretto também não acredita que este tenha sido um caso de biopirataria. “O laboratório tinha condições para investir e transformar a pesquisa pura em conhecimento aplicado. Isto é o que falta às nossas instituições de pesquisa aqui no Brasil”.

Nos casos de plantas e princípios ativos tirados da biodiversidade brasileira para virarem drogas e patentes no exterior que rendem milhões de dólares aos laboratórios estrangeiros que os patentearam o rol é imenso. Em muitos casos, os biopiratas se infiltram em comunidades tradicionais para pesquisar os hábitos e depois, levar aquelas plantas, extratos, ou produtos de origem animal para o laboratório, onde os princípios ativos são pesquisados, isolados e descobre-se um modo de produzi-lo em escala.

É o caso do jaborandi (Pilocarpus microphyllus), planta nativa da Amazônia brasileira, utilizada por tribos indígenas no preparo de chás diuréticos e expectorantes. Hoje, o laboratório Merck detém a patente sobre o isolamento de substâncias da planta. Desde o início da década de 90, a multinacional farmacêutica é dona de um terreno de 2.250 hectares no Maranhão, voltado para o cultivo de jaborandi, planta cujo princípio ativo, a pilocarpina, é utilizada em tratamentos de calvície e no controle do glaucoma. Existem outros 20 registros de patente no mundo com princípios ativos do jaborandi.

O laboratório Merck alega que sua patente sobre o jaborandi não pode ser classificada como fruto de biopirataria, pois o conhecimento na obtenção de seu princípio ativo teria passado a domínio público antes da instituição da legislação brasileira que regulamenta o acesso ao patrimônio genético, que desde 2001 prevê a necessidade de autorizações.

Carlos Alexandre Geyer, diretor presidente da Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais (Alanac), conta que, “quando uma empresa farmacêutica acessa o conhecimento tradicional de comunidades no uso das plantas, ela economiza anos de pesquisa na busca por princípios ativos e sua aplicação. Se o trabalho for feito dentro da lei, os lucros originados das pesquisas são divididos com a comunidade detentora do conhecimento. Como não vemos nenhuma dessas comunidades participando dos enormes lucros da indústria farmacêutica, fica óbvio que, na maioria das vezes, os caminhos corretos estão ignorados”.

Geyer tem estimativas de que os laboratórios chegam a ter custos 50% menores de desenvolvimento de produtos para transformar conhecimento tradicional em conhecimento científico e depois em produtos. “Sem descobertas nacionais, seremos sempre um País periférico", diz Carlos Geyer e reforça que 95% dos medicamentos fitoterápicos consumidos no Brasil são de plantas de origem estrangeira. “Precisamos investir pesado na cadeia produtiva brasileira de fitoterápicos para reverter este quadro”.

O Aché é maior laboratório brasileiro e já investiu US$ 10 milhões em busca de novos remédios gerados a partir de plantas. Esse tipo de droga está na moda, sobretudo na Europa. Só na Alemanha, 40% de todos os medicamentos prescritos são fitoterápicos. O Aché tem uma briga com a empresa japonesa Nippon Mektron por causa da patente do princípio ativo da espinheira-santa.

Em 1990, um estudo da ação antiúlcera gástrica da espinheira-santa (Maytenus ilicifolia) feita por grupo de pesquisa brasileiro mereceu uma publicação da Ceme (Central de Medicamentos) do Ministério da Saúde. O material foi divulgado pelo Journal of Ethnofarmacology e despertou o interesse dos japoneses, que saíram na frente e depositaram uma patente com a planta brasileira. A empresa japonesa Nippon Mektron detém uma patente de um remédio que se utiliza do extrato da espinheira santa (EP 776666).

"A parceria é a melhor saída tanto para as universidades como para os laboratórios", constata Lauro Moretto. Em sua opinião, o financiamento da iniciativa privada é o caminho para viabilizar as pesquisas, além de ser uma alternativa mais econômica para as empresas. Ele afirma que o Brasil tem potencial gigantesco de biodiversidade e dentro de uns 20 anos, com o esforço que tem sido feito pelo governo, instituições de pesquisas nacionais e os laboratórios, o País deve ser tornar um líder em inovação biotecnológica.